domingo, 6 de junho de 2010

Uma música distante


Passou-se quase uma vida desde que escrevi este conto. Encontrei-o amarelecido junto com outros, mas cuidadosamente guardados por minha mãe, fã e incentivadora de tudo o que eu escrevia. Achei-o interessante e, motivada pelo comentário feito por Eliana Gerânio Honório sob a postagem intitulada Palavras ao Vento, decidi publicá-lo neste espaço.

*Uma música distante

Que estranha mágica lhes pregara o destino para fazê-los compartilhar do mesmo espaço e não se identificarem? Ele, viúvo recente e sem filhos. Ela? Já nem mais sabia que nome dar a sua condição social. Estado de direito, estado de fato, estado civil? Nem solteira, nem casada. Uma coisa! Em que acreditava mesmo era na vida, na amizade, na capacidade meio tardia de se reinventar e se reconstruir. Acreditava ainda no amor, com a mesma intensidade ingênua da juventude; nos homens, não. Desgastara muitos anos de vida dedicando-a ao mesmo afeto conquistado em tenra idade, nunca reencontrado, mas levando-a a aceitar, rendida, um outro ser que a fizera deixar de querer uma vida diferente e melhor.

Teria sido a mesmice, a aceitação do egoísmo dele ou o medo, pacientemente injetado pela mãe, que a tornara submissa e temerosa em abrir as próprias asas e lançar-se à vida em busca de novos ventos? Somente agora se dava conta da passagem implacável dos anos.O espelho, no entanto, ainda a revelava uma linda mulher. Rosto imponente, cabelos bem cuidados, corpo esbelto, tudo nos devidos lugares, uma leve insinuação de celulite estrategicamente escondida sob as partes internas das coxas. Nada que não pudesse camuflar e esconder de olhar desatento.

A música suave esbaldava-se pela janela aberta, ansiando por novos ares e sensíveis audiências. As flores, recostadas nos jardins da praça, abriam-se sonolentas, despertadas pelos primeiros raios do sol que já antecipava a Primavera. Sorriam embevecidas pelas quentes carícias solares e ensaiavam uma estranha dança, acalentadas pela musicalidade doce oriunda do apartamento em frente. Do 312, subitamente, passou-se a ouvir a mesma música da morada oposta, Love me tender, orquestrada. As notas suaves da canção fugiram pelas frestas da porta e se acomodaram sem pedir licença, nas lembranças dos vizinhos moradores.

Sem se darem conta, ambos se aquietaram e recordaram-se daquele baile iniciado com o tradicional New York New York. Ele, destemido; ela, uma jovem tímida e sonhadora. Ao inciar Love me tender, endireitou os ombros, levantou-se como um touro bravo, instigado pelo aparente desinteresse da jovenzinha e se aproximou arrogantemente. Convidou-a para dançar e os dois, embalados pela som da melodia, pareciam flutuar sobre mares revoltos ou suaves nuvens perdidas no espaço. Amor à primeira vista ou música impulsionadora do romantismo? Não sabiam... Naquele momento, entre os dois, só havia o desejo e o amor. Desejo de não mais se separarem, amor pelo sentimento se espargindo deles.

Súbito, ele, o destino, lançou o seu estratégico manto. Do emaranhado de fios que geravam energia sonora ao baile, faíscas crescentes tomaram conta do palco e labaredas insistentes se alastraram para as belas luminárias do salão. Aos poucos, a magia tétrica do fogo foi tomando conta de tudo. Correria geral. A pequena cidade, em pânico, aterrorizava-se numa escuridão aquecida pela fogueira que consumia a bela edificação social. Aos gritos, buscara pelas primas, enquanto se dirigia ao carro deixado por elas perto da praça. As duas já a esperavam. Uma, chorando; a outra, rindo meio embriagada ou nervosa pelo inesperado acontecimento.

Apressadas para fugirem da tragédia, que tomara conta de tudo, ganharam a estrada e volveram para as suas casas, distantes daquela pequenina cidade, cujo endereço fora encontrado pelo espírito aventureiro da prima mais velha. No caminho, comentavam se não teriam sido movidas pelo egoísmo e fugido daquele jeito sem se preocuparem como tudo terminara. Teriam apagado o fogo, houvera vítimas? No coraçãozinho e na mente dela, Love me tender ecoava sem parar. Junto com a música, aparecia o rosto e o destemor dele. O coração batendo de encontro ao dela num ritmo descompassado da canção de amor.

Nunca mais se viram, mas, na mente deles, acomodara-se, em definitivo, aquela música, aquele baile e a forçada separação. Nele, ficara a saudade do que não acontecera. Nela, a inquietação e a busca insôfrega de um estranho amor que se lhe apossara sem cerimônia. Talvez residisse, no nefasto acontecimento do passado, a sua aceitação do compartilhamento de vida com quem não amava e por quem jamais fora amada. Sem se dar conta, passou a dar o mesmo rosto do jovem perdido no passado ao vizinho do 312. Quem sabe, um dia, tomaria coragem e lhe pediria emprestada uma xícara de açúcar, farinha talvez.


5 comentários:

  1. Maravilhosa desde sempre! bjs tia querida

    ResponderExcluir
  2. Oi, Alessandra amada:
    Que bom que gostaste do conto. Achei-o entre os "herdados" da Zaidinha. (Reencontrei outros ainda mais interessantes que, passada a tristeza pela perda dela, vou me encorajando a publicar).
    Um carinhoso abraço.

    ResponderExcluir
  3. Arlete, pode reproduzir a música que você citou no texto? Não estou me lembrando dela. É de filme, de Sinatra? De quem?
    O texto é lindo e romântico. Gostei do final que deu para ele. Eu também escrevia coisas bonitas. Um dia me encorajo também e envio para vc publicar, posso?

    ResponderExcluir
  4. Oi!
    Como não sei qual das duas músicas queres que eu reproduza, vou postar as duas: New York New York e Love me tender, OK?
    Voltas aqui amanhã e ouvirás essa belas canções.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  5. NOssa...essa É MINHA MÃE!
    TE AMO!!

    ResponderExcluir